segunda-feira, novembro 06, 2006

Estamira: Esta mira, o olhar que tudo pode ver e tudo pode revelar

A intenção inicial do diretor Marcos Prado (co-produtor do premiado Ônibus 174) era filmar as transformações do aterro sanitário Jardim Gramacho, em Duque de Caxias, destino de 85% do lixo produzido na cidade do Rio de Janeiro.O processo duraria sete anos, até conhecer uma das 2000 pessoas que, diariamente, garimpavam objetos velhos e restos de comida no aterro. A senhora de 65 anos, semi-analfabeta, de pele morena e o rosto marcado pela idade e trabalho possuía uma vontade incomum de se expressar.Seu nome: Estamira, ou como afirma a própria protagonista , “A Estamira”.

Renan Damasceno

O diretor poderia ter se rendido a editar o filme mostrando apenas os momentos lúcidos desta senhora, mas perderia a essência, acabando por apenas mitificá-la. Ao contrário, explorou o discurso ora rancoroso, ora doce, mas sempre enfático da personagem. Ela é perturbadora porque é capaz de gerar sentimentos de desconforto, mas também de admiração, por isso nos afeta.

A fotografia é outro ponto forte – no início, uma filmagem manual em preto e branco contrapondo-se ao colorido digital do restante do filme - e juntamente com a trilha sonora proporciona momentos de poesia no cenário caótico e putrefato do lixão.A alvoroçada dança dos urubus sobre os restos de animais mortos e a briga de dois cachorros por uma boneca são algumas das cenas , minuciosamente, observadas pela lente das câmeras.O que poderia ser tachado, simploriamente, como estética da miséria, nos fascina pela excelente combinação entre as imagens e o discurso místico da catadora de lixo.

Os minutos iniciais do filme são uma sobreposição confusa de imagens e palavras desconexas. É a apresentação da personagem Estamira, dotada de falas sem sentido, algumas vezes, indecifráveis. Sua personalidade parece única, mas ao longo do filme se revela como milhões. Mulher, feiticeira, doce, raivosa, louca, lúcida.Todos temos um pouco de Estamira. Todo o caos do lixão, dos urubus, do mar agitado é uma metáfora de seu pensamento desordenado e inclassificável, aparentemente ilógico.

A razão de seu distúrbio pode ter explicação em sua vida. Aos 12, é levada para um prostíbulo pelo próprio avô, que a estuprava desde muito cedo. Aos 17, casa-se com um italiano com quem teve sua primeira filha. Vêm em seguida várias traições, brigas violentas, novos casamentos e novos filhos. Depois de ser fortemente violentada, revolta-se com a religião e com Deus: centro de seu discurso e que provoca descontrolada ira ao ter o nome mencionado.

Após longos minutos de frases sem sentido lógico começa a permear palavras de grande potência filosófica que criam conceitos e definem modos de pensar. O “trocadilo”, o “controle remoto”, os “espertos ao contrário” e os “astros negativos” são os mais citados. ”Minha missão, além de ser a Estamira, é revelar a verdade, somente a verdade, capturar a mentira e jogar na cara”. Suas falas são dotadas de profecias que definem sua prepotência, como a única pessoa que sabe da existência do “além dos além”, que cientista nenhum conhece.

A perturbação de Estamira não é uma doença mental, pois como ela mesma afirma que “doente mental é aquele que é imprestável”. Seu discurso é marcado por uma peculiar lucidez e um conhecimento que não é aquele aprendido na escola, “lugar onde tudo se copia”, o que a distancia do “comum”.Ao manter esse distanciamento, Estamira consegue ver o que ninguém vê: a degeneração do homem que produz a desigualdade, a violência e se oprime rendendo devoções a Deus, que o castiga. Segundo ela, quem presta esta devoção está “contaminado pela doença da terra”.

Seu pensamento não é menos verossímil e legítimo que muitos disseminados no “mundo normal”. Se suas palavras não são reconhecidas como tal, é porque Estamira é uma outsider, faz parte da comunidade dos que vivem “do lado de fora”, que sobrevivem de “restos e descuidos”, à mercê da sociedade, que deles nada quer saber. Viver do lixo não é motivo de desgosto, ao contrário, Estamira gratifica e faz de Gramacho sua casa, onde criou fortes laços de amizade. Isto faz com que o filme não caia no lugar comum, sendo uma simples denúncia da miséria. Se há denúncia, é do descaso, não apenas social, mas existencial.

Um comentário:

Anônimo disse...

Oie Renan :))
Apreciei por demais o seu comentário!! Não assisti o Estamira ainda, como te disse, infelizmente...nem sei se vai estreiar por aqui!!!
Mas o pouco que vi no trailler do próprio site, tem total correlação com o que você escreveu!
Conseguiu traduzir bem os sentimentos, as inquetações, os questionamentos ... acho que é essa temática que o diretor procurou mostrar ! Loucura e Lucidez - várias dicotomias!!
Está de parabéns pela leitura que fez !!!
Abraço e Beijokas
Vanis