terça-feira, novembro 28, 2006

Volver - Definitivamente, um filme de Almodóvar.

Volver... con la frente marchita,
Las nieves del tiempo platearon mi sien...
Sentir... que es un soplo la vida,
Que veinte años no es nada,
Que febril la mirada, errante en las sombras,
Te busca y te nombra.
Vivir... con el alma aferrada
A un dulce recuerdo
Que lloro otra vez...
(Carlos Gardel)



por: renan damasceno

Pedro Almodóvar tornou-se uma grife do cinema contemporâneo. O mais aclamado diretor de língua hispânica desde Luís Buñuel e Carlos Saura. Criou um universo cinematográfico particular: fotografia e cores peculiares, roteiros que se abrem formando uma rede de histórias a partir dos segredos e desejos das suas personagens. Assistir um novo trabalho de Almodóvar é apenas constatar a genialidade deste que é o maior diretor em atividade.

Não, não é exagero. Na história do cinema, Almodóvar é um dos raros diretores que conseguiu emplacar um estilo único em seus filmes. Digo único porque os grandes mestres, que mudaram o curso da história cinematográfica, em sua maioria, - como Eisenstein, Godard, Glauber, etc. – participavam de escolas que criavam novas linguagens a partir de experimentos coletivos, com filmes de vários diretores ao mesmo tempo - Nouvelle Vague, Neo Realismo, Cinema Novo, por exemplo. Almodóvar é estrela solitária no apagado cinema espanhol da década de 80.

A experiência de Almodóvar começou nos subúrbios de Madrid. Seus primeiros filmes (Labirinto de Paixões, 1982, Que fiz eu para merecer isto?, 1884, e Matador, 1987) têm um pouco deste mundo periférico e suburbano da capital espanhola: drogas, dragqueens e homossexualismo.

A segunda fase, a partir de 1989, com Mulheres à beira de um ataque de Nervos, marca a passagem de um cinema marginal para o universo melodramático e o reconhecimento internacional. Daí em diante seus filmes passaram a ter a marca “Una película de Almodóvar”, explorando o universo feminino, os desejos, as relações amorosas e familiares. Tudo sobre minha mãe (1999) é a prova definitiva e marca a terceira fase de seu cinema, a partir deste, seus filmes passaram a ser aguardados com anseio pelo público e aclamados pela crítica.

Minha intenção não é escrever um texto biográfico. Apesar de ter assistido todos os filmes do diretor lançados no Brasil, falta-me conhecimento cinematográfico pra isso. Coloquei essa breve história porque é impossível falar de seu mais novo lançamento sem voltar no tempo. Aliás, é Volver (voltar, em espanhol) o nome da película.

O filme é uma volta, não apenas a La Mancha, terra natal do diretor, onde são filmadas várias cenas com a protagonista Penélope Cruz (Raimunda), mas uma volta ao universo feminino, após o hiato masculino de Má Educação (2004). É a volta de Carmem Maura, musa dos seus primeiros trabalhos. A volta do que Almodóvar sabe explorar, como poucos: as relações afetivas e familiares.

A história é imprevisível – outra característica -, as personagens são muito bem desenhadas num universo, unicamente, feminino. Raimunda, a protagonista, é uma mulher bela e sofrida, no melhor estilo Sofia Loren nos filmes de Vittorio de Sica. Sole, sua irmã, após ser abandonada pelo marido, sobrevive, sozinha, trabalhando de cabelereira, clandestinamente, dentro da própria casa. Paula, a filha, a típica adolescente.

As gerações se encontram no vilarejo que Raimunda abandonou quando se casou com Paco e foi viver em Madrid. Começa com a celebração da morte: a lavagem dos túmulos, cuidados - como ensina a tradição - pelas viúvas, vestidas uniformemente de preto. Neste início, Almodóvar retrata a submissão das mulheres aos maridos, mesmo depois de mortos, e como todas, nascem e morrem, obedecendo à tradição da aldeia onde vivem. A mãe de Raimunda, que quebra essa submissão ateando fogo na casa que seu marido dormia com outra, é obrigada a viver trancada na casa da tia, abstendo-se da vida, não apenas por medo judicial, mas por destoar-se do caminho natural de todas as mulheres do lugar.

A vida de Raimunda em Madrid é difícil. Paco torna-se alcoólatra, é despedido do emprego. Ela trabalha como faxineira no aeroporto.O dia que muda toda a história do filme acarreta uma série de acontecimentos: Paula é assediada pelo Pai; Paco é assassinado com uma facada pela filha; Tia Paula (Tia de Raimunda, que vivia no vilarejo) morre e sua mãe reaparece.

A volta da personagem de Carmem Maura traz a tona uma série de segredos que dão sentido ao filme e à vida das duas filhas – Raimunda e Sole – e da neta.

Noto outra peculiaridade nos filmes do criador de Volver. Os segredos que são revelados, na maioria de seus trabalhos como diretor, e que dão sentido ao filme, poderia ser usado, certamente, para se desenvolver outro roteiro, tão genial quanto o próprio filme. Esta característica da multiplicidade esta presente nas grandes obras contemporâneas, da literatura ao cinema, como defende o filósofo italiano Ítalo Calvino, em suas Seis Propostas Para o Próximo Milênio.

Há vários filmes de Almodóvar dentro de um filme de Almodóvar.

segunda-feira, novembro 06, 2006

Estamira: Esta mira, o olhar que tudo pode ver e tudo pode revelar

A intenção inicial do diretor Marcos Prado (co-produtor do premiado Ônibus 174) era filmar as transformações do aterro sanitário Jardim Gramacho, em Duque de Caxias, destino de 85% do lixo produzido na cidade do Rio de Janeiro.O processo duraria sete anos, até conhecer uma das 2000 pessoas que, diariamente, garimpavam objetos velhos e restos de comida no aterro. A senhora de 65 anos, semi-analfabeta, de pele morena e o rosto marcado pela idade e trabalho possuía uma vontade incomum de se expressar.Seu nome: Estamira, ou como afirma a própria protagonista , “A Estamira”.

Renan Damasceno

O diretor poderia ter se rendido a editar o filme mostrando apenas os momentos lúcidos desta senhora, mas perderia a essência, acabando por apenas mitificá-la. Ao contrário, explorou o discurso ora rancoroso, ora doce, mas sempre enfático da personagem. Ela é perturbadora porque é capaz de gerar sentimentos de desconforto, mas também de admiração, por isso nos afeta.

A fotografia é outro ponto forte – no início, uma filmagem manual em preto e branco contrapondo-se ao colorido digital do restante do filme - e juntamente com a trilha sonora proporciona momentos de poesia no cenário caótico e putrefato do lixão.A alvoroçada dança dos urubus sobre os restos de animais mortos e a briga de dois cachorros por uma boneca são algumas das cenas , minuciosamente, observadas pela lente das câmeras.O que poderia ser tachado, simploriamente, como estética da miséria, nos fascina pela excelente combinação entre as imagens e o discurso místico da catadora de lixo.

Os minutos iniciais do filme são uma sobreposição confusa de imagens e palavras desconexas. É a apresentação da personagem Estamira, dotada de falas sem sentido, algumas vezes, indecifráveis. Sua personalidade parece única, mas ao longo do filme se revela como milhões. Mulher, feiticeira, doce, raivosa, louca, lúcida.Todos temos um pouco de Estamira. Todo o caos do lixão, dos urubus, do mar agitado é uma metáfora de seu pensamento desordenado e inclassificável, aparentemente ilógico.

A razão de seu distúrbio pode ter explicação em sua vida. Aos 12, é levada para um prostíbulo pelo próprio avô, que a estuprava desde muito cedo. Aos 17, casa-se com um italiano com quem teve sua primeira filha. Vêm em seguida várias traições, brigas violentas, novos casamentos e novos filhos. Depois de ser fortemente violentada, revolta-se com a religião e com Deus: centro de seu discurso e que provoca descontrolada ira ao ter o nome mencionado.

Após longos minutos de frases sem sentido lógico começa a permear palavras de grande potência filosófica que criam conceitos e definem modos de pensar. O “trocadilo”, o “controle remoto”, os “espertos ao contrário” e os “astros negativos” são os mais citados. ”Minha missão, além de ser a Estamira, é revelar a verdade, somente a verdade, capturar a mentira e jogar na cara”. Suas falas são dotadas de profecias que definem sua prepotência, como a única pessoa que sabe da existência do “além dos além”, que cientista nenhum conhece.

A perturbação de Estamira não é uma doença mental, pois como ela mesma afirma que “doente mental é aquele que é imprestável”. Seu discurso é marcado por uma peculiar lucidez e um conhecimento que não é aquele aprendido na escola, “lugar onde tudo se copia”, o que a distancia do “comum”.Ao manter esse distanciamento, Estamira consegue ver o que ninguém vê: a degeneração do homem que produz a desigualdade, a violência e se oprime rendendo devoções a Deus, que o castiga. Segundo ela, quem presta esta devoção está “contaminado pela doença da terra”.

Seu pensamento não é menos verossímil e legítimo que muitos disseminados no “mundo normal”. Se suas palavras não são reconhecidas como tal, é porque Estamira é uma outsider, faz parte da comunidade dos que vivem “do lado de fora”, que sobrevivem de “restos e descuidos”, à mercê da sociedade, que deles nada quer saber. Viver do lixo não é motivo de desgosto, ao contrário, Estamira gratifica e faz de Gramacho sua casa, onde criou fortes laços de amizade. Isto faz com que o filme não caia no lugar comum, sendo uma simples denúncia da miséria. Se há denúncia, é do descaso, não apenas social, mas existencial.