quinta-feira, janeiro 16, 2014

Acenos e cotoveladas: uma viagem no trem Vitória-Minas



Mineiro, segundo Fernando Sabino, não perde o trem. Viajando pela estrada de ferro Vitória-Minas, em outubro passado, percebi, além disso, que o bom mineiro não perde a oportunidade de acenar quando a locomotiva passa. Foram 664 quilômetros, de Belo Horizonte a Cariacica, sendo prontamente e amigavelmente atendido toda vez que erguia o braço.

A viagem, muito mais do que uma ode à mineiridade, é cheia de surpresas. E, ao contrário do que supõe a longa extensão e a duração de 13 horas, é agradável. Isso, claro, se se optar pela classe executiva (R$ 87), em vez da econômica (R$ 56). São vagões com ar condicionado e cadeiras macias, iguais as de ônibus.

Você embarca em Belo Horizonte às 7h30, se surpreende com a bonita paisagem em Sabará, fica horrorizado com a devastação das mineradoras um pouco mais à frente, em Barão de Cocais, às 9h. Vai ao vagão-restaurante, toma um café com pão e manteiga (custa por volta de R$ 3). Falta pouco para um garçom passar anotando os pedidos do almoço: o preço é convidativo, com opções que vão de filé de frango (R$ 13), carré (R$ 14) à deliciosa picanha (R$16), todos acompanhados de arroz, feijão, batata frita e farofa.

Os rios são os companheiros de quase toda viagem. Pela manhã, o Rio Piracicaba. À tarde, o Rio Doce, com seus bancos de areia e água de cor barrenta. Depois do almoço, que pode ser servido no restaurante ou na poltrona, um cochilo até chegar a Governador Valadares, às 14h, o meio da viagem.

Ao passo que o trem vai descendo rumo ao Espirito Santo,  a tarde cai. Pela janela, se vê a rotina de pequenas cidades e vilarejos: Galiléia, Conselheiro Pena, Resplendor, Aimorés … sobe e desce nas estações, mãe buscando criança na escola, aposentados proseando na praça. Ao contrário do que estamos acostumados em relatos orais, músicas ou na literatura mineiriana, as 29 estações (ou simples paradas) não são cheias de romantismo. São trocas rápidas e práticas, com gente correndo para visitar parentes, trabalhar ou ir ao médico – poucos são os viajantes a turismo.

O trem cruza a divisa lá pelas 17h. Boa hora para mais um cafézinho e uma ida ao vagão de leitura, para carregar o celular, ler um trecho de livro ou, para quem prefere, trabalhar um pouco no notebook – a falta de wi-fi é o ponto negativo. O maquinista avisa para fechar as janelas, já que, na falta de coisa melhor a se fazer, costumam jogar pedras nos vagões.

Às 20h30, entre cotoveladas, abraços, malas e bugingangas, o desembarque.

Entre edredons, sustos e suspiros


Quando o acrófobo personagem de James Stewart em Um Corpo que Cai (1958) se pendurou na calha para não despencar do telhado, às 4h47 de ontem, os cerca de 30 espectadores que resistiam bravamente diante do telão montado na parte externa do Palácio das Artes esfregaram os olhos e apertaram os dedos contra as cadeiras de plástico. Esse turbilhão de sensações – a tensão, o medo, o susto, o alívio –, adicionadas a xícaras de café, bate-papo e garrafas de vinho, ajudaram o público a se manter vivo ao longo da madrugada, enquanto Alfred Hitchcock tramava planos para fulminar seus protagonistas em Os pássaros (exibido às 23h), Disque M para matar (2h) e Um corpo que cai (4h30).

Dentro da sala do Humberto Mauro, que teve todas as sessões lotadas – a fila para a sessão das 2h começou a se formar às 20h30! –, o silêncio era cortado pelos sustos, pacotes de biscoito se abrindo, um ou outro ronco e suspiros por Tippi Hedren, James Stewart, Kim Novak ou Grace Kelly (esta última, exuberante no 3D). Por volta da 1h30, José Mojica Marins evocou Zé do Caixão para amenizar o clima de tensão e tirar risadas do público.

Quem não conseguia bilhete encostava-se nos cantos para um cochilo, dividindo cobertores e edredons, ou ia ao balcão para mais um café. Segundo um dos garçons, foram mais de 200 xícaras de expresso. Um garoto ao meu lado acordou assustado com o alarme do celular às 6h30, lembrando que faltava meia hora para bater ponto no trabalho.

Às 6h53, quando terminou a exibição de Um corpo que cai, o sol prejudicava consideravelmente a visibilidade do telão. Em vez de reclamações, veio um clima de alívio na fila para o café: entre as árvores do Parque Municipal, os passarinhos assobiavam uma melodia tranquila, sem dar pistas de que iriam assassinar os transeuntes.

(Publicado originalmente no caderno Gerais, do Estado de Minas, em 25/8/2013, em página dedicada a Mostra Hitchcock, no Cine Humberto Mauro)

terça-feira, janeiro 14, 2014

Gol de letra



Embora tenha chegado ao Brasil no fim do século 19 e se organizado a partir de 1916, com a criação da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), hoje CBF, o futebol só abandonou a cartola e o fraque no início da década de 1930, quando os principais jornais, sobretudo os cariocas, sob influência de jornalistas como Mário Filho, trocaram a pompa e a sisudez – “será levado a efeito amanhã, no aprazível field, o esperado match...” – por expressões que o aproximassem do público, dando tratamento lírico, dramático e, por que não?, épico à disputa e a seus protagonistas.

Flamengo é puro amor, do paraibano José Lins do Rego (Editora José Olympio), é mais uma importante coleção de textos de um dos períodos mais férteis do futebol brasileiro. São 111 crônicas pinçadas entre as 1.517 publicadas pelo autor de Menino de engenho no Jornal dos Sports, de março de 1945 a julho de 1957 – ano de sua morte. Titular da coluna Esporte e vida, José Lins se dedicou bravamente a defender o rubro-negro, a quem ele definia como “o clube do povo”.

Mais do que uma ode ao rubro-negro, o espaço concedido ao autor serviu para enriquecer a crônica esportiva, que, assim como o próprio futebol, engatinhava no profissionalismo. Embora outros literatos já tivessem dedicado textos ao futebol – João do Rio, outro rubro-negro notável, já tratava de seu amor clubístico na década de 1910 –, José Lins foi o primeiro grande escritor brasileiro a escrever sistematicamente sobre o esporte. Quando estreou a coluna, já se passava quase uma década da conclusão dos já consagrados livros que compõem o ciclo da cana, de Menino de engenho (1932) a Usina (1936).

Um dos mais importantes romancistas regionalistas do país, José Lins aceitou o convite de Mário Filho – dono do Jornal dos Sports e responsável por abdicar do formalismo em favor de um registro mais coloquial, próximo do linguajar do torcedor. Foi Mário, que dá nome ao Maracanã, quem popularizou termos como o Fla-Flu, ajudando a tornar o futebol o esporte das multidões e influenciando todos os grandes cronistas esportivos posteriores, de seu irmão mais novo, Nelson Rodrigues, a Sandro Moreyra, João Saldanha e Armando Nogueira.

Nas 111 crônicas selecionadas pelo jornalista Marcos de Castro, José Lins se notabiliza muito mais pela leveza de seus textos do que pela profundidade social e psicológica, que caracterizam as crônicas dos irmãos Rodrigues. São textos curtos, que muitas vezes fogem ao futebol para fazer um retrato dos costumes do Rio dos anos 1940 e 1950, e desprovidos de detalhes – na maioria dos textos nem sequer cita o resultado ou times envolvidos nas partidas que comenta, tornando essenciais as detalhadas notas do autor, que ocupam quase um terço do livro. São crônicas sobre o Flamengo de Domingos, Biguá, Perácio ou Zizinho, mas que também trata sobre os ídolos do América, Botafogo, Fluminense e Vasco.

Provocações Para aflorar a rivalidade entre os clubes, Zé Lins (como era chamado pelos próximos) utiliza amigos e personagens do seu cotidiano, com provocações ao livreiro Bertrand, da Rua do Ouvidor, torcedor do Fluminense, ou ao garçom Antero, da Confeitaria Colombo, vascaíno, assim como a amiga Rachel de Queiroz, a quem trata como uma vascaína por engano, por ter alma amadora, típica de rubro-negra. Por fim, ainda no campo das relações pessoais, o autor demonstra predileção pelos dirigentes – atitude que causaria estranheza nos tempos atuais, já que a crônica, ao longo das décadas, deu passos importantes no sentido de transformar os craques em protagonistas, e não os cartolas.

Flamengo é puro amor, mais do que um livro restrito aos valores e paixão rubro-negros, é um rico instrumento para analisar a crônica esportiva às luzes da literatura. Foi na experiência de 12 anos no Jornal dos Sports que o autor verificou “que a crônica esportiva era maior agente de paixão que polêmica literária ou o jornalismo político” (7/3/1945) e que “a informação esportiva, mais do que qualquer outra, deve se impor pela sua cordialidade e lisura de trato (carregando) a responsabilidade de educar o povo” (22/6/1945).

Publicado, originalmente, no caderno Pensar, do Estado de Minas