quarta-feira, fevereiro 13, 2013

Saudades e cinzas não foram apenas o que restou



Ao receber a incumbência de comandar esta croniqueta durante a festa de Momo, não perdi tempo e fui vasculhar músicas, discos e livros sobre a folia. Logo no primeiro dia, porém, descobri que nem os versos de Vinicius nem o samba de Nelson Cavaquinho, Noel e Cartola substituíam a experiência de ficar espremido no meio de um bloco, embolado ladeira abaixo, cantando e se arriscando ao tamborim.

Em quatro dias, visitei duas dúzias de blocos, subi e desci ruas e avenidas, com várias perguntas na cabeça e um bloco de papel na mão. Rasguei e rabisquei anotações que julguei impublicáveis. Descobri, entre outras coisas, que a dor é parte essencial do samba – e não falo das irremediáveis paixões de carnaval, que os foliões costumam levar uma quaresma inteira para curar.

Além da saudade e das cinzas, restaram bolhas nos pés, ressaca e a sensação de uma bateria inteira dentro da cabeça ao deitar no travesseiro. Acordei com gosto de fim de festa na boca e arrematei mais uma dose de animação antes de cair novamente na farra. Tive a certeza de que as entidades divinas criaram a quarta-feira justamente para os filhos de Deus não se acabarem na esbórnia.

Vi ciganas e falsos profetas, anjos e cafetinas. Prometeram-me o céu em uma roda de samba e, diante da minha recusa, desejaram-me um show de funk. Vi ruas quietas serem tomadas por confetes e serpentinas e, poucas horas depois, voltarem ao sossego típico de feriado. Muitos que espiavam pelas janelas não apenas viram a banda passar, como se juntaram cantando e dançando coisas de amor.

Pulei carnaval do Mangabeiras ao Padre Eustáquio, da Cidade Jardim ao Concórdia e vi a Praça Duque de Caxias, em Santa Tereza, mais cheia do que Mineirão em dia de Cruzeiro e Atlético – mas com água e tropeiro de boa qualidade.



Renan Damasceno (Publicação: 13/02/2013 04:00)

terça-feira, fevereiro 12, 2013

Do mangue beat aos Beatles




Quem me vê sempre parado, distante, garante que eu não sei sambar. Está certo. Diferentemente do introspectivo folião de Quando o carnaval chegar, de Chico Buarque, que se preservava calado para os dias de Momo, mexer o corpo com coordenação nunca foi meu forte, nem mesmo no futebol. Ontem, porém, tive de me concentrar nos diversos ritmos e acordes das ruas de Belo Horizonte para não perder o compasso.

No começo não foi muito fácil. Ao chegar ao Barro Preto, demorei alguns minutos para compreender o batuque, mais cadenciado do que maracatu, reforçado por berimbaus e tambores de capoeira de angola. Agogô, reco-reco e atabaque ditavam o ritmo das saias e cabelos das meninas que giravam feito peões. Música “sacolejante e malemolente, a mais fina flor da música popular preta brasileira”, como definiu um dos organizadores. Arrisquei um pouco e entendi o requebrado.

No berço de uma das mais antigas guardas de congo e moçambique, a dança folclórica africana, no Concórdia, o Filhos de Tcha Tcha apurava os tamborins para sair pelas ruas do bairro. Aplaudi a atitude e saquei o ritmo. Sem perder tempo, descendo a ladeira da Afonso Pena, o Bom Bloquiu pedia bênção a Tim Maia e Jorge Benjor. Quatro estudantes, com fardas coloridas sob sol a pino, me convidaram para cantar com eles o refrão de Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, dos Beatles. Me senti confortável, em casa.

A viagem sonora – beirando sociológica e etnográfica – terminou com o Baianas Ozadas, aos pés do viaduto de Santa Tereza, que me apresentou uma terminologia diferente: “axé vintage”. Um axé old school, de raiz, sacou? Algo com pitadas de Luiz Caldas, que permite também inserções bem-humoradas do grupo Molejo e de Sidney Magal.

Confesso que foi difícil ficar parado – até para não ser atropelado. O folião Vinícius Grissi, cansado de dançar por três dias em BH, me confidenciou que está pensando em descansar em Diamantina no próximo carnaval.




Renan Damasceno (Publicação: 12/02/2013 04:00)

domingo, fevereiro 10, 2013

Brilhante!


Fui assaltado uma única vez em Belo Horizonte, em um sossegado e ermo sábado de carnaval. Desde então (já se passaram oito anos), por esses dias, olho para os dois lados ao colocar o pé direito na calçada e me benzo três vezes antes de cruzar a rua. Há quatro anos, porém, não me sinto tão sozinho na capital nos dias de Momo. A folia – que chegou a BH 47 dias depois da fundação, em fevereiro de 1898, mas perdeu força a partir da década de 1980 – recuperou o fôlego, sacudiu a poeira e deu a volta por cima.

Desde as primeiras horas da manhã de ontem um rastro de cor, suor e batucada tomou as ruas do Centro e bairros de BH. Desceram Pernambuco, cruzaram Bahia, sambaram na Rio de Janeiro. Grupos se reuniram no Santo Antônio, no Santa Tereza, na Savassi e no Calafate. Para algumas centenas de foliões (chegando a milhares ao longo do dia), a Afonso Pena e a Praça da Estação eram a mais pura e apoteótica passarela.

Mas nada foi tão emblemático, tão brilhante, quanto o sambão do lado de baixo da Santos Dumont. Na Guaicurus, onde se concentra boa parte do meretrício, boates e malandros sem gravata e capital, o bloco Então Brilha! animou foliões e foliãs vestidos a caráter, comerciantes, transeuntes e, claro, as profissionais que labutavam a todo o vapor. No intervalo do sobe e desce frenético, algumas moças saíram e se arriscaram no samba. As roupas cintilantes e minúsculas, usadas para sedução, se tornaram abadás. As janelas de vidro fumê viraram camarotes. Baldes d’água refrescavam quem passava. Com sorriso largo, elas acenavam para quem curtia a festa.

O carnaval ainda anima uma pequena parcela dos moradores de BH. A calmaria ainda reina na maior parte dos bairros e praças. Os grupos que resolveram botar o bloco na rua são em boa parte ligados ao sentimento de ruptura com o establishment e de ocupação consciente do espaço público. Sob o clima de festa, paira uma forte crítica social e política, em músicas e atitudes. Os alvos, em especial, são figuras públicas que se perpetuam no poder ou se envolveram em escândalos recentes. Eu, por exemplo, sofria chacotas e reprimendas sempre que descobriam que meu nome é Renan.


Publicação: 10/02/2013 04:00  (Renan Damasceno/EM/D.A Press)