“Mineiro não briga, mas também não perdoa.” A frase atribuída ao político Hélio Garcia sintetiza o espírito que rege o cotidiano entre nossas montanhas. Uma cordialidade e tranqüilidade sempre pairam no ar até que tudo vem abaixo. São nesses momentos, entretanto, que aparece uma reflexão forçada de como o bonde está andando. Quem tem sido colocada sob suspeita ultimamente é a estabilidade do meio cultural na capital mineira, mas entre mortos e feridos temos alguns motivos para comemorar a permanência de espaços, iniciativas e a efervescência de nossa produção.
Um dos mais tradicionais e aguardados eventos da cidade, por pouco o FIT não sai da agenda de 2010, logo em sua décima edição. Depois de uma lavagem de roupa suja com direito a protestos de público e categoria e ameaças de abandono caso o barco voltasse a navegar de forma insatisfatória, Prefeitura e FMC garantiram sua realização. A situação evidenciou não só problemas, mas também a importância de um encontro de artes cênicas dessa amplitude para BH.
Mas eventos precisam de espaços. E a cidade perdeu alguns de seus mais importantes com a passagem de década. A Praça da Estação deixou de ser área de shows e voltou a ser apenas praça – e praia, em alguns divertidos sábados. Mas logo ali, em frente à bucólica Rui Barbosa, temos o Espaço 104, com sala de cinema e de exposição infelizmente às moscas. Falando em cinema, o Usina Unibanco fechou as portas para reforma na rua Aimorés sob dúvidas quanto a sua retomada.Das películas para os acordes, o Music Hall, que já havia anunciado seu fechamento, continua a oferecer uma das poucas boas estruturas para espetáculos de médio porte em BH.
Mas o equilíbrio entre verba de patrocinadores e a oriunda das entradas ainda causa insegurança. E foi num encontro ali que os brasilienses do Móveis Coloniais de Acaju de Brasília jogaram luz ontem sobre roqueiros mineiros que estão se destacando no nosso cenário alternativo, como Pequena Morte e Fusile.
Frescor de novidade foi o que se viu esta semana nas duas noites de sala lotada no teatro João Ceschiatti, que recebeu a banda Graveola e o Lixo Polifônico e Juliana Perdigão. Com arranjos que transitam entre uma irreverência festiva e uma inusitada concepção instrumental, o grupo mineiro comemora a seleção para o Conexão Vivo. O festival vai ecoar por duas semanas sonoridades de todas as matizes, que vão de Arnaldo Antunes a Burro Morto, de Macaco Bong a João Donato, do sul à Paraíba, da MPB ao rock experimental.
Juliana Perdigão também comemora a seleção para o edital Natura. Sua voz e seu belo clarinete poderão enfim estar num cd solo. Representante da excelência da música instrumental de BH, a sumidade Esdra “Nenem” é outro que vai registrar sua bateria em um álbum através do edital.
No cenário cultural da capital mineira algumas perguntas podem até ofender, mas são necessárias. É possível casas de show se manterem apenas com bilheteria? Até que ponto artistas estão atados e dependentes de editais? Temos espaços ao nível de nossa produção? Como acontecem as negociações para os grandes festivais? Perguntas que se justificam pelo patrimônio que temos na bateria de Nenem, no talento de Juliana e no espírito criativo do Graveola. E enquanto isso o trem da cultura segue tentando alinhar seus trilhos.
Domingo, seis horas da tarde. Horário incomum para shows na capital mineira. Mas lá estavam milhares de fãs dispostos a encarar o alto valor da entrada (R$60 a inteira), o preço salgado das bebidas (R$4,50 a lata de uma cerveja não muito apreciada), as enormes filas do banheiro feminino, o calor visível nos rostos suados da platéia e a falta de acústica de um ginásio travestido de casa de espetáculos. Nenhuma novidade para aqueles que são forçados a ir ao Chevrolet Hall para ver seus artistas preferidos.
Mas antes que o centro das atenções subisse ao palco, ficou a cargo do Copo Lagoinha deixar os presentes no clima do samba. Samba carioca para ficar mais claro. O grupo belorizontino desfilou por mais de uma hora os grandes clássicos daquele estado, com direito a declaração das escolas preferidas de cada integrante. Em nenhum momento foram apresentados temas de compositores dos morros de BH, origem afirmada com orgulho por muitos ali. Mas a função deles era outra: animar. E isso foi feito com muita competência. Com revezamento de cantores e bons instrumentistas (como o cavaquinista Dudu Braga), o Copa Lagoinha se despediu do público às 19h45 com a sensação de dever cumprido e mesmo com o merecimento de ter dividido os holofotes com a grande atração da noite. Infelizmente parece que isso não passou pela cabeça dos produtores.
Cerca de vinte e cinco minutos depois, Mart´nália estava diante de uma platéia ansiosa. E a primeira música do setlist foi logo o tema de abertura da atual “novela das oito” da Globo. Impossível não ser bem recebida nessas circunstâncias. Dali pra frente o que se viu foi o carisma de uma artista que caiu nas graças do Brasil na última década, apesar de já estar no ramo há mais de duas. A primeira parte do show foi conduzida pelo ritmo frenético da cantora, a cada instante num canto do palco, dançando de modo cômico e convidativo, tocando diversos instrumentos de percussão e distribuindo beijos, acenos e simpatia.
Muitas das canções apresentadas, como “Cabide”, foram acompanhadas efusivamente por milhares de gargantas e pulmões. Prova de que ela já tem seu espaço garantido no time de intérpretes brasileiras. Caminho aberto principalmente a partir do álbum “Pé de meu samba”, de 2002, o quarto de uma discografia que já está no oitavo trabalho. A produção teve o aval de ninguém menos que Caetano Veloso e Maria Bethânia. Mas lidar com grandes nomes da MPB nunca foi problema pra ela. Filha de Martinho da Vila, cresceu num ambiente de amor ao samba – e se este for de Vila Isabel melhor ainda. Os primeiros passos de Mart´nália foram dados fazendo vocais em apresentações do pai, que diz ter “inventado” a filha – o nome dela é uma junção do seu com o da mãe, Anália. A artista, no entanto, trilhou a própria estrada, traçando uma personalidade irreverente e cativante.
E na segunda parte do show trazido a capital mineira, ficou claro que essa personalidade não é fabricada, como o que se percebe com um pouco mais de olhar crítico diante da maioria das cantoras do país. A espontaneidade logo deu lugar a um clima mais intimista, com a percussão e toda base da banda cedendo lugar somente ao próprio violão. O timbre rouco – que cativou monstros do jazz num improvável duo com Madaleine Peyroux em homenagem à Bilie Holiday, ano passado, em Ouro Preto – trouxe ares de romantismo a pista até então destinada às desajeitadas sambadas dos mineiros. Versátil e talentosa, Mart´nália transparece ser uma artista que realmente vive a música à flor da pele.
Num contraponto à inegável presença de palco que desenvolve, ela faz questão de ser apenas mais uma ao lado de sua banda (guitarra, baixo, violão, bateria, duas percussões e vocais). Na medida em que se inclui num figurino todo preto à la holding, ela valoriza o conjunto e se sobressai unicamente por méritos. O grupo, por sinal, chama atenção pela qualidade de seus instrumentistas e por sonoridades discretamente diluídas ao longo da noite, principalmente através de um violão com toques jazzísticos e uma guitarra com nítida pegada roqueira.
Numa terceira etapa da apresentação, Mart´nália fez algumas homenagens ao samba, onde desfilaram Adoniran Barbosa e outros compositores já interpretados inclusive pela própria banda de abertura. Como não poderia deixar de ser, o nome de Martinho da Vila foi pronunciado mais de uma vez, algumas em meio ao tradicional despojamento da cantora (“vamos dar uma forcinha pro velho que ele precisa, já tá com 72 anos”). E a família não estava presente só no repertório, uma vez que os backings vocals ficam por conta da irmã e da sobrinha. Quando se achava que a presença de ambas era apagada e desnecessária, a jovem foi convidada a apresentar o gingado digno de uma passista de escola de samba sob todas as luzes e olhares e acabou por justificar a turnê ao lado da tia.
Depois de quase uma hora e meia, o show parecia ser conduzido para um final óbvio e pouco criativo com mais um tema que alcançou sucesso através de uma novela global. A interpretação de “Be happy”, que resume bem a figura de Mart´nália, dava um tom de despedida quando foi evocado um samba-enredo não facilmente assimilável para uma alegre e heterogênea platéia formada por casais, turmas de amigos, “dançarinos” e senhorinhas com leques na arquibancada, dentre outros tipos. A ala rítmica mostrou competência e já dava adeus quando o público puxou “Vou Festejar”, espécie de segundo hino dos atleticanos. Para o delírio destes, a cantora reconvocou a banda para acompanhar a música e ainda emendou mais dois temas de samba.
Fim de um domingo quente. Na barulhenta saída do ginásio uma sensação comum: valeu a pena enfrentar o Chevrolet Hall para um show de samba que, apesar de previsível, comprovou que Mart´nália é uma das artistas mais autênticas e carismáticas da atual safra musical brasileira.
A música popular brasileira, apesar da riqueza e diversidade produzidas no último século, ainda não cumpriu um processo completo e satisfatório de digestão de suas influências, pilares e pedras fundamentais. Passados mais de cinquenta anos, a Bossa Nova continua suspeita de ser um desdobramento do jazz americano; ainda não se sabe ao certo – ou não se quer saber – qual foi a real contribuição da Tropicália para a cultura do país, e seu principal representante, Caetano Veloso, é visto como um poço de contradição, pra não dizer incompreensão; o rock dos anos 80 leva o selo de um som comercial, superficial e sem muitas novidades.
Outro movimento que paira indefinido nas mentes, ouvidos e corações de ouvintes, músicos e críticos é a Jovem Guarda. Os meninos que empunhavam longos cabelos, jaquetas, motos vermelhas e guitarras que levavam ao delírio o público feminino – ao passo que faziam moda entre os desprestigiados nessa briga – foram submetidos a contundentes críticas nas últimas décadas, principalmente quando comparados aos outros movimentos da época.
Independente de opiniões e posições, os clichês só colaboram para continuidade de um país que não sabe lidar com suas artes.
O mais recente trabalho do ex-titã Arnaldo Antunes, nesse sentido, colabora de forma importante para essa revisão. O título do álbum, “Iê Iê Iê”, está no inconsciente coletivo brasileiro e naturalmente remete a uma série de sonoridades e temáticas – para ficar apenas no âmbito da música. E é exatamente isso o que se encontro nas doze faixas do disco. Logo na capa, uma imagem que dialoga com a cultura pop e com o cinema e Hqs americanos sugere o que está por vir. Está ali o obrigatório timbre do órgão Hammond, vocais simples e batidas dançantes, letras fáceis e meladas, guitarras coloridas e rompantes perfeitos para a histeria dos anos 60.
A proposta não é o que pode se dizer de uma releitura, como a feita por Fernanda Takai, com tutoria de Nelson Mota, sob as interpretações bossa-novísticas de Nara Leão. Nessa empreitada, Arnaldo Antunes incorporou o espírito da Jovem Guarda em todos sentidos, ecoando a aura de Roberto, Erasmo e companhia a cada faixa. Em “Invejoso”, vem a mente as rixas de casais, o ronco dos carros (ou calhambeques) e os objetos materiais (como casacos de couro), que valiam tanto quanto harmonias e melodias.
Na canção de mesmo nome do álbum, o tema é o sucesso, as rádios, a superação e seus frutos – no caso as mulheres conquistadas. “Sua Menina” apela para a consciência de que nem toda mulher gosta de um homem cafajeste.De forma curiosa, “Iê Iê Iê”, que apresenta uma homenagem de um roqueiro dos anos 80 ao movimento que marcou a década de 60, antecipa o “Rock” do Tremendão. Esse também é o nome de um disco de John Lennon, influência central da Jovem Guarda.
Ao lado de Arnaldo, aparece uma série de colegas tribalistas (Marisa Monte e Carlinhos Brown) e titãs (Sérgio Britto, Marcelo Fromer e Paulo Miklos). Todos eles, provavelmente, também sofreram uma enxurrada de Rita Pavone, Beatles, surf music, twist e programas de auditório quando crianças e adolescentes. A novidade ficou por conta da produção de Fernando Catatau, da emergente banda cearense “Cidadão Instigado”.
Depois de um disco de estúdio, “Qualquer”, e um DVD com registro ao vivo, ambos com pegada mais leve e intimista, Arnaldo se disse em busca de uma “sonoridade mais dançante”. E como ele mesmo conta, ao contrário de seus outros trabalhos, neste o título nasceu antes. De forma deliberada, nada apareceu por acaso: “Iê Iê Iê” foi planejado e executado, sem dúvida com qualidade.
O álbum não traz surpresas musicais – transparece, de forma honesta, um tom de homenagem declarada. Isso não pode ser visto, no entanto, de forma simplista quando se trata de Arnaldo Antunes. No vácuo da falta de referências intelectuais da década de setenta pra cá, ele se posicionou como um artista versátil, transitando do rock enérgico dos Titãs dos anos 80 ao experimentalismo em vídeo e poesia dos anos 90, passando pelo suspeito “Tribalistas” e por letras e versos que resgatam o concretismo dos anos 60.
Quase de forma imperceptível, Arnaldo imprime um tom próprio em faixas como “Envelhecer.” Apesar do ritmo alegre, a letra, que fala da perda de cabelo e do tempo que cruelmente não espera, faz um contraponto à jovialidade a flor da pele da Jovem Guarda. Aqui se estabelece um diálogo criativo entre temáticas e sonoridades. Em “Um Kilo”, os temas cotidianos e triviais do movimento em questão são incorporados pelo olhar poético de Arnaldo, num jogo de palavras onde o rei não se sentiria muito em casa.
“Iê Iê Iê” aparece como um bom trabalho num momento de releituras, homenagens e muita falta de criatividade. Emerge a figura de um artista que não tem medo de expor suas influências e de alternar discos “sérios” com outros “comerciais e dançantes”, porém sempre amparado por bons instrumentistas e por uma produção competente.
O álbum, contudo, passa longe de ser algo ousado e que mereceria estar num patamar louvável dentro da música brasileira – talvez até pela impossibilidade de trabalhar um estilo restrito, previsível e empobrecido estética, melódica e harmonicamente. Fica a homenagem de um bom artista a um movimento que marcou uma geração. Nada mais.
Novos aromas desenham no ar um cheiro de mudança ou, ao menos, de recomeço. Há pouco mais de um ano, o queijo – esse âmago, essa quintessência da mineiridade – foi elevado ao status de patrimônio cultural imaterial do estado. Durante a Expocachaça foi anunciado que, enfim, temos o dia da branquinha. No mês passado, a empresa Forno de Minas, um dos símbolos de nossa pedra filosofal, o pão-de-queijo, deixou de pertencer à insaciável e indigesta economia americana para retornar, depois de dez anos, à família mineira.
Mesa posta para indagar: o Brasil, sintetizado em Minas, continua se contentando com enlatados queimados em microondas ou, de tanto comer cru, começa a achar sua receita no lixo de uma digestão cultural inconstante?
Do lixo surgem alguns instrumentos do liquidificador do Graveola. Num movimento centrípeto, pop, soul, bossa nova, brega e experimentalismo trocam sabores. De um caldo polifônico surge, em vertigem centrífuga, um cheiro de novidade. Ao expor corajosamente suas fontes de inspiração, abrem-se novos canais de escoamento para nossas infinitas – enquanto lutem, posto que há a lama – criações musicais em constante antropofagia.
Em recente artigo, Arnaldo Jabor (aquele que Nelson Rodrigues se referia como o jovem que chupava sorvete em plena Marcha dos 100 mil) declarou que, de tanto o Brasil fazer antropofagia de outras culturas, já estamos em processo de indigestão. Recentemente descobri que a manga não é nossa (Mangifera indica) e que nosso único instrumento genuíno é a ... cuíca.
Enfim, o que é nosso? Nossa é essa sede que seca nossas gargantas roucas; nossa é essa fome que consome nossas estéticas glauberianas que não se rendem. Não somos o pulmão e tampouco as chuteiras do mundo, somos seu estômago. De canibais do século dezesseis, passamos a antropofágicos do século XX para chegar à regurgitofagia da transição de séculos.
A comida está para a criação assim como a culinária está para a cultura de um país. Assim, temperos somente ganham autêntico gosto quando celebram-se os próprios pratos. Apesar da exploração midiática, os cinqüenta anos de Bossa Nova e Cinema Novo e os cem anos do samba são sinais de que não vivemos tanto na solidão e num ensaio eterno de uma cegueira cultural.
Mas os guardiões do limiar estão sempre a postos (lembram da marcha contra a guitarra elétrica?): como explicar a inicial rejeição, tal qual uma criança relutando a comer verduras, ao Transamba de Caetano? Com um rock minimalista em compasso com o samba tal qual queijo e goiabada, o tropicalista reafirma o que todos insistem em não ver desde o “Transa”: a essência está na mudança. Ao cantar o falso Leblon e sentenciar que a Lapa é a síntese do Brasil, Caetano deixa de falar que ele sim é a síntese do Brasil.
O problema, como diria Elis, é que o Brazil não conhece o Brasil. Como dizia Manoel, a única solução, então, é dançar um tango argentino. Quer dizer, como diria aquele de Budapeste, o melhor é botar água no feijão, pois desde Cabral estamos com uma fome e uma sede de anteontem.
*João Marcos VEIGA, 23, é jornalista. Editor do programa Microfonia, da PUCTV