quarta-feira, junho 07, 2006

Margem da Palavra - A Terceira Margem do Rio



Texto: Renan Damasceno

“O seu palavreado diferente [de Guimarães Rosa] não é constituído propriamente de vocábulos “difíceis” ou desusados, como no caso de Euclides da Cunha ou Coelho Neto, mas de recriações e invenções forjadas a partir das virtualidades do idioma, que levam o leitor a constantes descobertas.” Augusto de Campos.

A Terceira margem do rio, sexto conto do livro Primeiras Estórias (1962), é uma celebração do silêncio, do sujeito que se desapropria da linguagem e fica à margem da vida. Uma narrativa silenciosa, que nos guia por um rio-texto, “rio abaixo, rio afora, rio adentro”.

O conto funda-se na narração do filho sobre seu pai “homem cumpridor, ordeiro, positivo” que decide viver em uma canoa à margem do rio. Narra o desgosto da família, seu sentimento de culpa, os anos que, rio acima, rio abaixo, seu pai vive sem se distanciar da margem. O conto termina quando a imagem do filho quase se funde com a do pai e o pedido do mesmo para quando morrer ser colocado em uma canoa, rio abaixo.

Guimarães Rosa se apropria da linguagem popular e cria um vocabulário calcado de neologismos, regionalismo e com sonoridades que se assemelham às criações joycianas. Metáforas e aliterações são comuns na narrativa como a seqüência fonética que dá fim ao texto “rio abaixo, rio afora, rio adentro – o rio”.

O personagem principal – o pai – caminha para uma não-existência ao quietar-se em sua canoa. Segundo Lacan, “existimos na linguagem e esta se relaciona com a cultura e com o social”, ao abrir mão desse instrumento de interação social, o personagem foge dessa ordem convencionada de existência.

O filho, incomodado com a situação, vive em sua culpa, de não ser capaz de tomar o lugar do pai e falha em sua última tentativa, ao fugir correndo pra longe da canoa.

Nesse conto de sentimentos desolados, culposos, de relação distanciada, tece a trama desse conto primoroso de Guimarães Rosa.

+ Guimarães Rosa na Internet:
O conto na íntegra :
http://www.releituras.com/guimarosa_margem.asp

sábado, junho 03, 2006

Ensaio - Corpo Fechado

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*Texto: Renan Damasceno
*Foto: Ayron Borsari


Corpo Fechado é a antepenúltima das nove novelas que compõem Sagarana, romance inaugural da obra ficcional de Guimarães Rosa. Publicado em 1946, o livro é um dos precursores do pós-modernismo e firma a característica verticalizada de Rosa: a transcendência do estritamente regional para, assim, chegar a uma dimensão metafísica, universal do homem.

Esta é uma história de valentões e de espertos, de violência e de feitiços. A pequena e interiorana Laguinha é assombrada pela presença dos sucessivos “espanta-praças”: José do Boi, Desidério, Miliguido, Adejalma – “nome bobo, que nem é de santo” - , Targido e finalmente, Manuel Fulô.
Manuel Fulô (ou Manuel Veiga, Manuel Peixoto, Manuel Flor, Mané das Moças, ou ainda, quando xingado, Mané-minha-égua) é o anti-herói da história. Não trabalhava, de jeito nenhum, “e gostaria de saber quem foi que inventou o trabalho, pra poder tirar vingança” e, assim como Dom Quixote e o cavalo Rocinante, vivia acompanhado de sua besta nhata, Beija-Fulô, e juntos “centaurizavam gloriosamente”.
Por conviver algum tempo com os ciganos, aprendeu deles toda a sorte de truques possíveis, envolvendo animais de montaria. Quando decide casar, Targino, um dos valentões (aliás, um dos últimos) da cidade cisma em ter para si a noite de núpcias.
E aqui que começa a história que dá nome ao título. Targino, o “cobra que pisca olho”, “excomungado”, se encanta pela futura esposa de Manuel, das Dor.
Reboliço. Correrias. Movimentação do doutor.Renegando o sobrenome Veiga, esses que o apoiaram antes do momento fatídico. Antonico das águas, “que tinha alma de pajé” e era “curandeiro-feiticeiro”, agora entra na história para “fechar o corpo” de Manuel Fulô – em troca da égua Beija-fulô - “requisitando agulha-e-linha, um prato fundo, cachaça e uma lata com brasas”:
“- Fechei o corpo dele. Não careçam de ter medo, que para arma de fogo eu garanto!...”
Na rua da casa do Doutor, onde todos espiavam a suposta desgraça de Manuel, acontece o encontro.Targino erra os cinco tiros e Manuel com uma quicé, quase canivete, furou o valentão, que “girando na perna esquerda e ceifando o ar com a direita; capotou, deviveu”.
Mesmo com a lealdade dos Veigas, o ingrato novo-valentão termina o conto esbravejando aos quatro-ventos:
“-Conheceu, diabo, o que é raça de Peixoto?!”

Fica claro ao longo do texto a devoção do povo interiorano pelo “valentão”. Esse é invocado por diversas expressões que o santificam – como ser inatingível - ou o demonizam – como excomungado. Outra chave para desvendar o sertanejo de Corpo Fechado é a esperteza, a malandragem, o anti-heroísmo, presente em Manuel-Fulô. Podemos tomar isso como uma fuga, uma alternativa de sobrevivência, próximo do personagem João Grilo , da peça teatral O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna (1955).
Numa linguagem mesclada de arcaísmos, figuras de linguagem e tipismos mineiros, Rosa universaliza o sujeito regional. Atribui novas formas e qualidades e cria, a partir disso,uma nova concepção do homem sertanejo
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