quarta-feira, setembro 03, 2008

O jeito mineiro de pensar e fazer cinema

*Reportagem inscrita no Prêmio BDMG de Jornalismo Cultural 2007

Renan Damasceno

Quase um século se passou desde que “aquele mocinho engrouvinhado, que tem cara de infusório” adentrou a sala do diretor do Diário de Minas, carregando embaixo do braço a crítica do filme Diana, a caçadora. O longa-metragem, provavelmente americano, acabara de estrear no recém-inaugurado Cine Pathé, na Avenida Afonso Pena, e se transformou em assunto obrigatório entre os belo-horizontinos, qualificado como “mais do que prejudicial, nojento” pela conservadora Liga pela Moralidade. O mocinho – descrito acima com muita acidez pelo escritor Eduardo Frieiro – era Carlos Drummond de Andrade, que acabara de mudar de Itabira para tornar-se jornalista na capital mineira. Drummond também despejava críticas moralistas sobre o filme em seu primeiro artigo na grande imprensa, “Diana, a moral e o cinema”, publicado em 15 de abril de 1920, por um outro jornal, o Jornal de Minas.


Belo Horizonte era uma cidade que oscilava entre a modernidade e a tradição. A primeira exibição de cinema em Minas Gerais – 22 de julho de 1897, em Juiz de Fora –, havia acontecido apenas 18 meses após a sessão inaugural feita pelos irmãos Lumiére, no subsolo do Grand Café, em Paris, e chegaria à recém-formada capital mineira em 1898. Logo nos primeiros anos do século XX, a sétima arte encontraria adeptos fiéis, incrementada pela revolução narrativa de D.W. Griffith, em 1915 (diretor de O nascimento de uma nação, primeiro longa-metragem da história) e também pelo surgimento de vários cinemas, como o Cine Pathé e o Cine Odeón, à Rua da Bahia.

Já o jornalismo capengava entre sucessivas aberturas e fechamentos de jornais, escorado por uma Associação Mineira de Imprensa não menos desestruturada, que sobreviveu por quatro anos – de 1918 a 1922.

Dos jornais da época, que conseguiram mais de meia dúzia de edições, destaca-se o Diário de Minas, fundado em 1899 e órgão oficial do Partido Republicano Mineiro. Muita coisa mudou desde as exibições do Cine Pathé, e os jovens cinéfilos puritanos e moralistas das primeiras décadas, certamente, ateariam fogo nas salas de cinema se assistissem, quase 50 anos depois, à obra de seu conterrâneo, Neville d’Almeida, que trouxe para as telas A Dama da Lotação e Os Sete Gatinhos, adaptações das célebres crônicas de Nélson Rodrigues.

Confira a Galeria de Fotos dos cinemas de BH





















1 - Cine Odeón, à Rua da Bahia (década de 1910)
2 - Cine Floresta, esquina de Pouso Alegre e Itajubá (déc. de 1910)
3 - Cine Glória (déc. de 1920)
4 - Cine Metrópole (déc de 1940)

5 - Cine Brasil, arquitetura art decó no coração da cidade (déc de 1930)
6 - Cine Brasil (déc. de 1930)


A nova geração de Cataguases

Cataguases, um lugarzinho atrasado que vivia sonolento às margens do Ribeirão Meia Pataca, presenciou na década de 20 o nascimento de dois movimentos importantes na cultura brasileira: A revista modernista Verde e o cinema de Humberto Mauro. Até então, o solitário motivo de orgulho para a cidade era a glória de ter inventado o picolé. “Sem palito, mas picolé”, ressalta o cineasta.

Mesmo a cidade obtendo importância histórica graças a Humberto Mauro, o movimento modernista de Cataguases não passou despercebido. Em 1927, nascia a primeira edição da revista Verde, influenciada pelos textos que balançavam as estruturas da literatura brasileira pós-Semana de 22. Em suas seis edições, a revista contou com a colaboração de nomes importantes como Jorge de Lima e Murilo Mendes. Tudo isso graças a Rosário Fusco, que aos 17 anos, sem nenhuma cerimômia, pediu ao autor de Macunaíma que lhe enviasse “uma bosta qualquer”, para uma revista que estava organizando com alguns amigos. Mário, surpreendido com o bilhete, não relutou em colaborar.

Na primeira edição da revista, Rosário dedica um artigo ao lançamento de Tesouro Perdido, segundo longa-metragem do conterrâneo. Na edição 5, J. Martins aplaude a iniciativa de Mauro, e prevê uma “hollywood-mirim” em Cataguases. Mas a relação entre os dois grupos termina por aí. A Verde encerra seu expediente em 1929, ano em que o outro filho ilustre da cidade muda-se para o Rio de Janeiro. Humberto Mauro, apaixonado por fotografia, enxergou a possibilidade de fazer cinema ao conhecer o fotógrafo italiano Pedro Comello.

O cinema brasileiro estava em crise com o domínio massivo dos americanos e a única saída eram os ciclos regionais. “O ciclo de Cataguases obteve sucesso graças ao financiamento de fazendeiros e comerciantes da Zona da Mata, que investiram nessa aventura”, conta o historiador Rafael Ciccarini, professor de Cinema Brasileiro da Escola livre de cinema de Belo Horizonte. Segundo o historiador, outra coisa que favoreceu a realização, quase artesanal, de filmes como Na Primavera da Vida (1926) e Tesouro Perdido (1927) era o conhecimento técnico de Mauro, formado em eletromecânica.

Após dirigir quatro filmes em Cataguases, Humberto Mauro – já reconhecido como grande diretor pela revista Cinearte, de Adhemar Gonzaga – vai para a Cinédia e dirige seus principais longas, entre eles Ganga Bruta (1931-33), A voz do Carnaval (1933) e Favella dos meus amores (1935). Anos depois, a convite do ministro Gustavo Capanema, Mauro se vincula ao Instituto Nacional de Cinema Educativo, produzindo 357 filmes científicos e educativos, até 1972.

Mesmo com o reconhecimento de público e crítica nos anos de Cinédia, Humberto Mauro só alcançou o título de “fundador do cinema brasileiro” na virada dos anos 1950 para os 60, por críticos como Alex Viany e Paulo Emílio Salles Gomes (esse último reconstruiu a experiência do cineasta no livro Humberto Mauro: Cataguases, Cinearte). Rafael Ciccarini também ressalta a importância do diretor na formação do Cinema Novo: “Da metralhadora de críticas que Glauber Rocha disparou, com sua revisão sobre nosso cinema, sobrou pouca coisa. Entre elas, o nome mais aclamado foi de Humberto Mauro”.

A cidade com o maior número de críticos por Km²

A história do cinema brasileiro começou a ser reescrita em meados dos anos 50 com o engajamento de críticos responsáveis por reformular a relação entre o Brasil e as novas tendências do cinema mundial. Influenciados pela nova crítica francesa da Nouvelle Vague e fortalecidos pelo cineclubismo, os cineastas brasileiros enxergaram a possibilidade de criar um novo cinema, ou seja, um Cinema Novo, movimento teorizado e liderado por Glauber Rocha. Belo Horizonte, no final dos anos 40, abrigou um dos mais importantes e consistentes cineclube do país.


A dedicação dos mineiros à crítica de cinema culminou na publicação da Revista de Cinema – criada por Cyro Siqueira, no início da década de 50, que se estendeu ao longo de dez anos, com 24 edições – e no CEC, Centro de Estudos Cinematográficos, criado em 1951. Tal paixão foi lembrada pelo jornalista Humberto Werneck, em seu livro O Desatino da Rapaziada, dizendo que a capital mineira “se converteu na cidade com o maior número de críticos de cinema por quilômetro quadrado”. Fábio Leite, crítico de cinema do jornal Hoje em Dia e filiado ao CEC desde a década de 70, atribui esse fenômeno à presença marcante da sétima arte na vida da população que, segundo ele, “naquela época, não tinha muita coisa pra se fazer”. “Assistíamos aos filmes e depois ficávamos horas discutindo nas mesas dos bares. Até na Faculdade de Engenharia Química da UFMG improvisava-se um pano branco para exibições após a aula. Profissionais, de todas as áreas, começavam a esboçar um espírito crítico em relação aos filmes, e a base encontrávamos no CEC, com mostras, palestras e debates”, explica.

O CEC foi fundamental na formação de várias gerações de críticos. Muitos, como Marcelo Castilho Avelar e o próprio Fábio Leite, atuam na imprensa mineira. O centro de estudos ainda funciona em uma pequena sala no Palácio das Artes e é um dos realizadores do festival Curta Minas, mas não tem a mesma força de antes. Já a Revista de Cinema alcançou repercussão internacional e foi responsável por introduzir na pauta dos críticos brasileiros, cineastas como Luís Buñuel e Ingmar Bergman. Com a solidificação da imprensa em Minas, o jornalismo e a crítica escreveu uma história de estreita relação com o cinema, sendo responsáveis por alimentar a paixão dos mineiros pela sétima arte.


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