terça-feira, janeiro 14, 2014

Gol de letra



Embora tenha chegado ao Brasil no fim do século 19 e se organizado a partir de 1916, com a criação da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), hoje CBF, o futebol só abandonou a cartola e o fraque no início da década de 1930, quando os principais jornais, sobretudo os cariocas, sob influência de jornalistas como Mário Filho, trocaram a pompa e a sisudez – “será levado a efeito amanhã, no aprazível field, o esperado match...” – por expressões que o aproximassem do público, dando tratamento lírico, dramático e, por que não?, épico à disputa e a seus protagonistas.

Flamengo é puro amor, do paraibano José Lins do Rego (Editora José Olympio), é mais uma importante coleção de textos de um dos períodos mais férteis do futebol brasileiro. São 111 crônicas pinçadas entre as 1.517 publicadas pelo autor de Menino de engenho no Jornal dos Sports, de março de 1945 a julho de 1957 – ano de sua morte. Titular da coluna Esporte e vida, José Lins se dedicou bravamente a defender o rubro-negro, a quem ele definia como “o clube do povo”.

Mais do que uma ode ao rubro-negro, o espaço concedido ao autor serviu para enriquecer a crônica esportiva, que, assim como o próprio futebol, engatinhava no profissionalismo. Embora outros literatos já tivessem dedicado textos ao futebol – João do Rio, outro rubro-negro notável, já tratava de seu amor clubístico na década de 1910 –, José Lins foi o primeiro grande escritor brasileiro a escrever sistematicamente sobre o esporte. Quando estreou a coluna, já se passava quase uma década da conclusão dos já consagrados livros que compõem o ciclo da cana, de Menino de engenho (1932) a Usina (1936).

Um dos mais importantes romancistas regionalistas do país, José Lins aceitou o convite de Mário Filho – dono do Jornal dos Sports e responsável por abdicar do formalismo em favor de um registro mais coloquial, próximo do linguajar do torcedor. Foi Mário, que dá nome ao Maracanã, quem popularizou termos como o Fla-Flu, ajudando a tornar o futebol o esporte das multidões e influenciando todos os grandes cronistas esportivos posteriores, de seu irmão mais novo, Nelson Rodrigues, a Sandro Moreyra, João Saldanha e Armando Nogueira.

Nas 111 crônicas selecionadas pelo jornalista Marcos de Castro, José Lins se notabiliza muito mais pela leveza de seus textos do que pela profundidade social e psicológica, que caracterizam as crônicas dos irmãos Rodrigues. São textos curtos, que muitas vezes fogem ao futebol para fazer um retrato dos costumes do Rio dos anos 1940 e 1950, e desprovidos de detalhes – na maioria dos textos nem sequer cita o resultado ou times envolvidos nas partidas que comenta, tornando essenciais as detalhadas notas do autor, que ocupam quase um terço do livro. São crônicas sobre o Flamengo de Domingos, Biguá, Perácio ou Zizinho, mas que também trata sobre os ídolos do América, Botafogo, Fluminense e Vasco.

Provocações Para aflorar a rivalidade entre os clubes, Zé Lins (como era chamado pelos próximos) utiliza amigos e personagens do seu cotidiano, com provocações ao livreiro Bertrand, da Rua do Ouvidor, torcedor do Fluminense, ou ao garçom Antero, da Confeitaria Colombo, vascaíno, assim como a amiga Rachel de Queiroz, a quem trata como uma vascaína por engano, por ter alma amadora, típica de rubro-negra. Por fim, ainda no campo das relações pessoais, o autor demonstra predileção pelos dirigentes – atitude que causaria estranheza nos tempos atuais, já que a crônica, ao longo das décadas, deu passos importantes no sentido de transformar os craques em protagonistas, e não os cartolas.

Flamengo é puro amor, mais do que um livro restrito aos valores e paixão rubro-negros, é um rico instrumento para analisar a crônica esportiva às luzes da literatura. Foi na experiência de 12 anos no Jornal dos Sports que o autor verificou “que a crônica esportiva era maior agente de paixão que polêmica literária ou o jornalismo político” (7/3/1945) e que “a informação esportiva, mais do que qualquer outra, deve se impor pela sua cordialidade e lisura de trato (carregando) a responsabilidade de educar o povo” (22/6/1945).

Publicado, originalmente, no caderno Pensar, do Estado de Minas

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