domingo, março 21, 2010

O calor do samba e o frescor da autenticidade

João Marcos Veiga

Domingo, seis horas da tarde. Horário incomum para shows na capital mineira. Mas lá estavam milhares de fãs dispostos a encarar o alto valor da entrada (R$60 a inteira), o preço salgado das bebidas (R$4,50 a lata de uma cerveja não muito apreciada), as enormes filas do banheiro feminino, o calor visível nos rostos suados da platéia e a falta de acústica de um ginásio travestido de casa de espetáculos. Nenhuma novidade para aqueles que são forçados a ir ao Chevrolet Hall para ver seus artistas preferidos.

Mas antes que o centro das atenções subisse ao palco, ficou a cargo do Copo Lagoinha deixar os presentes no clima do samba. Samba carioca para ficar mais claro. O grupo belorizontino desfilou por mais de uma hora os grandes clássicos daquele estado, com direito a declaração das escolas preferidas de cada integrante. Em nenhum momento foram apresentados temas de compositores dos morros de BH, origem afirmada com orgulho por muitos ali. Mas a função deles era outra: animar. E isso foi feito com muita competência. Com revezamento de cantores e bons instrumentistas (como o cavaquinista Dudu Braga), o Copa Lagoinha se despediu do público às 19h45 com a sensação de dever cumprido e mesmo com o merecimento de ter dividido os holofotes com a grande atração da noite. Infelizmente parece que isso não passou pela cabeça dos produtores.

Cerca de vinte e cinco minutos depois, Mart´nália estava diante de uma platéia ansiosa. E a primeira música do setlist foi logo o tema de abertura da atual “novela das oito” da Globo. Impossível não ser bem recebida nessas circunstâncias. Dali pra frente o que se viu foi o carisma de uma artista que caiu nas graças do Brasil na última década, apesar de já estar no ramo há mais de duas. A primeira parte do show foi conduzida pelo ritmo frenético da cantora, a cada instante num canto do palco, dançando de modo cômico e convidativo, tocando diversos instrumentos de percussão e distribuindo beijos, acenos e simpatia.

Muitas das canções apresentadas, como “Cabide”, foram acompanhadas efusivamente por milhares de gargantas e pulmões. Prova de que ela já tem seu espaço garantido no time de intérpretes brasileiras. Caminho aberto principalmente a partir do álbum “Pé de meu samba”, de 2002, o quarto de uma discografia que já está no oitavo trabalho. A produção teve o aval de ninguém menos que Caetano Veloso e Maria Bethânia. Mas lidar com grandes nomes da MPB nunca foi problema pra ela. Filha de Martinho da Vila, cresceu num ambiente de amor ao samba – e se este for de Vila Isabel melhor ainda. Os primeiros passos de Mart´nália foram dados fazendo vocais em apresentações do pai, que diz ter “inventado” a filha – o nome dela é uma junção do seu com o da mãe, Anália. A artista, no entanto, trilhou a própria estrada, traçando uma personalidade irreverente e cativante.

E na segunda parte do show trazido a capital mineira, ficou claro que essa personalidade não é fabricada, como o que se percebe com um pouco mais de olhar crítico diante da maioria das cantoras do país. A espontaneidade logo deu lugar a um clima mais intimista, com a percussão e toda base da banda cedendo lugar somente ao próprio violão. O timbre rouco – que cativou monstros do jazz num improvável duo com Madaleine Peyroux em homenagem à Bilie Holiday, ano passado, em Ouro Preto – trouxe ares de romantismo a pista até então destinada às desajeitadas sambadas dos mineiros. Versátil e talentosa, Mart´nália transparece ser uma artista que realmente vive a música à flor da pele.

Num contraponto à inegável presença de palco que desenvolve, ela faz questão de ser apenas mais uma ao lado de sua banda (guitarra, baixo, violão, bateria, duas percussões e vocais). Na medida em que se inclui num figurino todo preto à la holding, ela valoriza o conjunto e se sobressai unicamente por méritos. O grupo, por sinal, chama atenção pela qualidade de seus instrumentistas e por sonoridades discretamente diluídas ao longo da noite, principalmente através de um violão com toques jazzísticos e uma guitarra com nítida pegada roqueira.





Numa terceira etapa da apresentação, Mart´nália fez algumas homenagens ao samba, onde desfilaram Adoniran Barbosa e outros compositores já interpretados inclusive pela própria banda de abertura. Como não poderia deixar de ser, o nome de Martinho da Vila foi pronunciado mais de uma vez, algumas em meio ao tradicional despojamento da cantora (“vamos dar uma forcinha pro velho que ele precisa, já tá com 72 anos”). E a família não estava presente só no repertório, uma vez que os backings vocals ficam por conta da irmã e da sobrinha. Quando se achava que a presença de ambas era apagada e desnecessária, a jovem foi convidada a apresentar o gingado digno de uma passista de escola de samba sob todas as luzes e olhares e acabou por justificar a turnê ao lado da tia.

Depois de quase uma hora e meia, o show parecia ser conduzido para um final óbvio e pouco criativo com mais um tema que alcançou sucesso através de uma novela global. A interpretação de “Be happy”, que resume bem a figura de Mart´nália, dava um tom de despedida quando foi evocado um samba-enredo não facilmente assimilável para uma alegre e heterogênea platéia formada por casais, turmas de amigos, “dançarinos” e senhorinhas com leques na arquibancada, dentre outros tipos. A ala rítmica mostrou competência e já dava adeus quando o público puxou “Vou Festejar”, espécie de segundo hino dos atleticanos. Para o delírio destes, a cantora reconvocou a banda para acompanhar a música e ainda emendou mais dois temas de samba.

Fim de um domingo quente. Na barulhenta saída do ginásio uma sensação comum: valeu a pena enfrentar o Chevrolet Hall para um show de samba que, apesar de previsível, comprovou que Mart´nália é uma das artistas mais autênticas e carismáticas da atual safra musical brasileira.

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