João Marcos Veiga
A música popular brasileira, apesar da riqueza e diversidade produzidas no último século, ainda não cumpriu um processo completo e satisfatório de digestão de suas influências, pilares e pedras fundamentais. Passados mais de cinquenta anos, a Bossa Nova continua suspeita de ser um desdobramento do jazz americano; ainda não se sabe ao certo – ou não se quer saber – qual foi a real contribuição da Tropicália para a cultura do país, e seu principal representante, Caetano Veloso, é visto como um poço de contradição, pra não dizer incompreensão; o rock dos anos 80 leva o selo de um som comercial, superficial e sem muitas novidades.
Outro movimento que paira indefinido nas mentes, ouvidos e corações de ouvintes, músicos e críticos é a Jovem Guarda. Os meninos que empunhavam longos cabelos, jaquetas, motos vermelhas e guitarras que levavam ao delírio o público feminino – ao passo que faziam moda entre os desprestigiados nessa briga – foram submetidos a contundentes críticas nas últimas décadas, principalmente quando comparados aos outros movimentos da época.
Independente de opiniões e posições, os clichês só colaboram para continuidade de um país que não sabe lidar com suas artes.
O mais recente trabalho do ex-titã Arnaldo Antunes, nesse sentido, colabora de forma importante para essa revisão. O título do álbum, “Iê Iê Iê”, está no inconsciente coletivo brasileiro e naturalmente remete a uma série de sonoridades e temáticas – para ficar apenas no âmbito da música. E é exatamente isso o que se encontro nas doze faixas do disco. Logo na capa, uma imagem que dialoga com a cultura pop e com o cinema e Hqs americanos sugere o que está por vir. Está ali o obrigatório timbre do órgão Hammond, vocais simples e batidas dançantes, letras fáceis e meladas, guitarras coloridas e rompantes perfeitos para a histeria dos anos 60.
A proposta não é o que pode se dizer de uma releitura, como a feita por Fernanda Takai, com tutoria de Nelson Mota, sob as interpretações bossa-novísticas de Nara Leão. Nessa empreitada, Arnaldo Antunes incorporou o espírito da Jovem Guarda em todos sentidos, ecoando a aura de Roberto, Erasmo e companhia a cada faixa. Em “Invejoso”, vem a mente as rixas de casais, o ronco dos carros (ou calhambeques) e os objetos materiais (como casacos de couro), que valiam tanto quanto harmonias e melodias.
Na canção de mesmo nome do álbum, o tema é o sucesso, as rádios, a superação e seus frutos – no caso as mulheres conquistadas. “Sua Menina” apela para a consciência de que nem toda mulher gosta de um homem cafajeste. De forma curiosa, “Iê Iê Iê”, que apresenta uma homenagem de um roqueiro dos anos 80 ao movimento que marcou a década de 60, antecipa o “Rock” do Tremendão. Esse também é o nome de um disco de John Lennon, influência central da Jovem Guarda.
Ao lado de Arnaldo, aparece uma série de colegas tribalistas (Marisa Monte e Carlinhos Brown) e titãs (Sérgio Britto, Marcelo Fromer e Paulo Miklos). Todos eles, provavelmente, também sofreram uma enxurrada de Rita Pavone, Beatles, surf music, twist e programas de auditório quando crianças e adolescentes. A novidade ficou por conta da produção de Fernando Catatau, da emergente banda cearense “Cidadão Instigado”.
Depois de um disco de estúdio, “Qualquer”, e um DVD com registro ao vivo, ambos com pegada mais leve e intimista, Arnaldo se disse em busca de uma “sonoridade mais dançante”. E como ele mesmo conta, ao contrário de seus outros trabalhos, neste o título nasceu antes. De forma deliberada, nada apareceu por acaso: “Iê Iê Iê” foi planejado e executado, sem dúvida com qualidade.
O álbum não traz surpresas musicais – transparece, de forma honesta, um tom de homenagem declarada. Isso não pode ser visto, no entanto, de forma simplista quando se trata de Arnaldo Antunes. No vácuo da falta de referências intelectuais da década de setenta pra cá, ele se posicionou como um artista versátil, transitando do rock enérgico dos Titãs dos anos 80 ao experimentalismo em vídeo e poesia dos anos 90, passando pelo suspeito “Tribalistas” e por letras e versos que resgatam o concretismo dos anos 60.
Quase de forma imperceptível, Arnaldo imprime um tom próprio em faixas como “Envelhecer.” Apesar do ritmo alegre, a letra, que fala da perda de cabelo e do tempo que cruelmente não espera, faz um contraponto à jovialidade a flor da pele da Jovem Guarda. Aqui se estabelece um diálogo criativo entre temáticas e sonoridades. Em “Um Kilo”, os temas cotidianos e triviais do movimento em questão são incorporados pelo olhar poético de Arnaldo, num jogo de palavras onde o rei não se sentiria muito em casa.
“Iê Iê Iê” aparece como um bom trabalho num momento de releituras, homenagens e muita falta de criatividade. Emerge a figura de um artista que não tem medo de expor suas influências e de alternar discos “sérios” com outros “comerciais e dançantes”, porém sempre amparado por bons instrumentistas e por uma produção competente.
O álbum, contudo, passa longe de ser algo ousado e que mereceria estar num patamar louvável dentro da música brasileira – talvez até pela impossibilidade de trabalhar um estilo restrito, previsível e empobrecido estética, melódica e harmonicamente. Fica a homenagem de um bom artista a um movimento que marcou uma geração. Nada mais.
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